sábado, 17 de dezembro de 2011

Calvino e I Timóteo 2:4-5



  I Timóteo 2:4-5












Objeção: Calvino não sustentou a doutrina da expiação limitada-ilimitada, ou seja, a posição dos calvinistas moderados em relação a extensão da expiação, pois seu comentário sobre I Timóteo 2:4-5 ensina a expiação limitada estrita e que Deus não deseja a salvação de todos sem exceção.

Nota do blog: Para ver parte do comentário do reformador on line clique aqui

Resposta:

Essa objeção é fundamentada em uma interpretação equivocada das seguintes palavras do reformador retiradas de seu comentário sobre I Timóteo 2:4-5:



"Ele, porém, está falando de classes, e não de indivíduos; e sua única preocupação é incluir em seu número príncipes e nações estrangeiros. Que a vontade de Deus é que eles também participem do ensinamento do evangelho é por demais óbvio à luz das passagens já citadas e de outras afins. Não é sem razão que se disse: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e as extremidades da terra por tua possessão” [Salmo 2:8]". [texto retirado do link acima]

A leitura equivocada que se faz desse texto é que, como Calvino entende que "todos" ali são "classes", então ele não está fazendo uma referência à vontade de Deus para a salvação de todos os homens, mas sim uma referência à vontade de Deus para a salvação dos eleitos de todos os tipos, raça e classe.  Além disso conclui-se a partir dessa interpretação que sempre que Calvino utiliza "todos" em seus escritos, ele não quer dizer "todos sem exceção", mas "todos sem distinção" ou "todo tipo de pessoas eleitas".  Essa conclusão visa possibilitar uma leitura mais restrita de algumas declarações de Calvino que parecem ensinar a expiação universal, como as que apresento a seguir:

“Nosso Senhor Jesus sofreu por todos, e não há nem grande nem pequeno que não esteja sem desculpas hoje”, [1]
“ 'Suportar', ou 'tirar os pecados', é livrar de culpa por sua satisfação aqueles que pecaram. Ele diz que os pecados de muitos, isto é, de todos, como em Romanos 5:15” [2]

“Porque Ele não olhou para a justiça, para a integridade e para a perfeição que estava em Jesus Cristo, mas, ao invés, o tomou como estando ali no lugar de todos os pecadores”. [3]
“Então, como diz o Salmo, nosso Senhor Jesus pagou as dívidas de todos os pecadores”. [4]

Entretanto, tanto a interpretação das palavras de Calvino quanto a conclusão tiradas delas não procedem por diversos motivos, os quais apresento a seguir:


1)Quando falamos de uma classe de pessoas podemos estar tratando de todos na classe ou apenas de alguns da classe. Quando dizemos, por exemplo, “os militares brasileiros tiveram aumento”, isso se refere a todos os militares brasileiros sem exceção, mas quando dizemos “os militares brasileiros entraram no ônibus”, pelo contexto, percebe-se que se trata de apenas alguns militares brasileiros. Sendo assim, dizer que “todos” em I Timóteo 2:4-6 significa “todo tipo de pessoa” (ou “classes de pessoas”) não resolve a questão, porque isso, por sua vez, pode indicar tanto “alguns de todos os tipos” quanto “todos de todos os tipos”.


2)Agora, vamos supor, por um momento, que a interpretação que abordo esteja correta e que Calvino compreendia que o “todos” em I Timóteo 2:4-5 se refiria a alguns de todos os tipos.  Isso levanta duas questões:

a)Isso demonstra que o reformador não acreditava que a expiação era limitada-ilimitada? Não. Isso significaria no máximo que Calvino entendia que essa passagem diz respeito a morte de Cristo somente aos eleitos, o que não anularia suas outras referências a um aspecto universal e ilimitado da expiação. Deve-se ter em mente que isso, no máximo, provaria que ele defendia um aspecto limitado da expiação, ao que não somos contrários.

b)Isso significa que sempre que ele usou “todo” ou “todos” devemos compreender que ele queria dizer “alguns de todos os tipos"?  Não. Isso simplesmente não funciona em seus textos. Veja um exemplo disso no comentário de Calvino sobre Romanos 5:18:

O texto:

“Paulo faz a graça comum a todos os homens, não porque de fato se estenda a todos, mas porque é oferecida a todos. Embora Cristo tenha sofrido pelos pecados do mundo, e é oferecido pela bondade de Deus sem distinção a todos os homens, ainda assim nem todos o recebem.”

O texto lido com “todos” significando “alguns de todas as classes” fica assim:

“Paulo faz a graça comum a alguns de todas as classes, não porque de fato se estenda a alguns de todas as classes, mas porque é oferecida a alguns de todas as classes. Embora Cristo tenha sofrido pelos pecados do mundo, e é oferecido pela bondade de Deus sem distinção a alguns de todas as classes, ainda assim nem alguns de todas as classes o recebem.” 

Fica claro que essas interpolações na leitura, ainda que bem intencionadas, realmente não funcionam em Calvino, a não ser é claro que o leitor possa escolher onde “todos” significa “alguns de todos” e onde realmente significa “todos”.


‎3)Agora vamos ao sentido das palavras de Calvino:

a)Como ele entende uma classe de pessoas nesse comentário? Como todos ou alguns da classe? Seguindo mais a frente no comentário publicado pela Editora Fiel, páginas 63-64, Calvino demonstra que não entende “classe” de uma forma restrita, isto é, como apenas alguns da classe.: 

“Não ignoro o argumento sutil apresentado pelos papistas, pelo qual falsamente alegam que o preço de nossa redenção, pago por Cristo em sua morte, nos é aplicado no batismo, de tal modo que o pecado original é destruído; não obstante, depois disso, somos reconciliados com Deus por meio de satisfações [humanas]. Dessa forma, limitam a um curto período de tempo e a uma só classe de pessoas um benefício que é universal e perpétuo.”

Repare que nesse texto ele está dizendo que os papistas limitam a redenção somente àquelas pessoas que foram batizadas (todos os batizados) e não somente a algumas pessoas que foram batizadas, ou seja, ele fala de classe de pessoas não como sendo “algumas pessoas da classe”, mas se referindo a “todas as pessoas da classe”.  Isso por si só demonstra que há a possibilidade, baseado no seu uso das palavras, que ele poderia ter entendido todas as classes de uma forma não restrita como faz John Owen.


b)O que ele entende pelo “desejo de Deus” em I Timóteo 2:4


“Ele ordena que orações solenes sejam feitas por reis e príncipes em autoridade. Como naquela época haviam muitos perigosos inimigos da Igreja, para evitar o desespero da obstrução da aplicação para a oração, Paulo antecipa suas dificuldades, declarando que Deus quer que todos os homens sejam salvos. Quem não vê que a referência é a ordens de homens ao invés de homens individuais? Nem, aliás, a distinção carece de fundamento: que o sentido não é de indivíduos de nações, mas nações de indivíduos. De qualquer forma, o contexto deixa claro que nenhum outra vontade é intentada do que aquela que aparece na externa pregação do evangelho.  Assim, Paulo quer dizer que Deus quer a salvação de todos a quem Ele misericordiosamente convida pela pregação de Cristo"

Fica claro na parte salientada que ele não compreende que essa seja a vontade de decreto (vontade secreta) de Deus. Mas então de qual vontade ele compreende que Paulo está falando? Calvino entende que essa é a vontade revelada de Deus, a qual é universal e condicional para com os pecadores. O texto a seguir demonstra bem isso:

“Tudo isso Pighius nega em alta voz, aduzindo que a passagem do apóstolo "Que deseja que todos os homens sejam salvos" (1 Tm 2:4.), e, referindo-se também a Ezequiel 17: 23, ele argumenta assim:
“ 'Que Deus não deseja a morte do pecador' pode ser tomado sobre seu próprio juramento, onde Ele diz por esse profeta: 'Assim como eu vivo, diz o Senhor, não tenho prazer na morte do ímpio, mas ao invés que ele se converta dos seus caminhos, e viva' ”
Agora nós respondemos que como a linguagem do profeta aqui é uma exortação ao arrependimento, não é de maneira nenhuma espantoso nele declarar que Deus deseja que todos os homens sejam salvos. Porque a mútua relação entre ameaças e promessas mostra que essas formas de falar são condicionais. Desse mesmo modo Deus declarou para os ninivitas, e para os reis de Gerar e do Egito, que faria o que, na realidade, não intentava fazer, pois o seu arrependimento evitou a punição que Ele ameaçou infligir a eles.
Disso é evidente que a punição foi declarada na condição de sua permanente obstinação e impenitência. E, no entanto, a declaração da punição foi positiva, como se fosse um decreto irrevogável. Mas depois de Deus ter os amedrontado com a apreensão de sua ira, e devidamente os humilhou, para que não ficassem completamente desesperados, Ele os encoraja com a esperança de perdão, para que eles pudessem sentir que ainda havia sido deixado aberto um espaço para o remédio. Assim, é com relação às promessas condicionais de Deus, que convida todos os homens para a salvação. Elas não positivamente provam o que Deus decretou em secreto, mas apenas declaram o que Deus está pronto para fazer a todos aqueles que são trazidos à fé e ao arrependimento
Mas os homens ignorantes de Deus, sem entender essas coisas, alegam que nós por esse meio atribuamos a Deus uma dupla ou dúbia vontade. Considerando que Deus está tão longe de ser variável, que nem sombra de tal variação diz respeito a Ele, mesmo no mais remoto grau. Daí Pighius, ignorante da natureza divina dessas coisas profundas, assim argumenta:
"O que é isso senão fazer de Deus um zombador dos homens, se Deus é representado como realmente não querendo o que Ele professa querer, e não tem prazer no que Ele, na realidade, tem prazer? "
Mas se esses dois membros da sentença forem lidos em conjunto, como sempre deveria ser -
"Eu não tenho prazer na morte do ímpio"
e
" Mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva "
-- lendo essas duas proposições em conexão uma com a outra, a calúnia é eliminada de uma vez. Deus exige de nós esta conversão, ou o "afastamento de nossa iniqüidade" e todo aquele em quem Ele encontra isso, Ele não decepciona com relação a prometida recompensa da vida eterna. Portanto, é dito que Deus tanto quer e tem prazer nessa vida eterna, como tem prazer no arrependimento; e Ele tem prazer no último, porque convida todos os homens a ele por meio de Sua Palavra. 
Agora, tudo isso está em perfeita harmonia com o seu secreto e eterno conselho, pelo qual Ele decretou converter ninguém, a não ser os eleitos. Ninguém, a não ser os eleitos de Deus, portanto, se converterá da sua impiedade. E, ainda assim, o adorável Deus não deve ser, por essa causa, considerado variável ou capaz de mudar, porque, como um legislador, Ele ilumina todos os homens com externa doutrina da vida condicional. Dessa maneira primária Ele chama, ou convida, todos os homens à vida eterna. Mas, de outro modo, traz à vida eterna aqueles a quem quis segundo o seu propósito eterno - regenerando por seu Espírito, como um Pai eterno, apenas Seus próprios filhos". [5]

c) Qual é a relação entre o tipo de vontade de Deus aqui e o sentido de “classe de pessoas”? Pelas citações acima, fica evidente que Calvino entende que Deus quer salvar a todos sem exceção conforme sua vontade revelada e que é essa vontade de Deus em I Timóteo 2:4. Sendo assim, não havia sentido para ele tentar reduzir o número (de todos para alguns) dos que Deus deseja salvar. 

O que ele está defendendo é que como não se trata da vontade de Deus para um homem em particular, mas da vontade de Deus para um grupo de pessoas, essa vontade não é Sua vontade secreta, mas sua vontade revelada. Dessa forma, seguindo o raciocínio do reformador, não haveria nenhuma base para qualquer argumento a favor do universalismo (salvação de todos sem exceção), pois sua vontade revelada não é o que Ele certamente fará, mas o que Ele está disposto a fazer em determinadas condições.

A verdade é que existem apenas três citações de Calvino que são usadas para tentar afirmar que ele defendia a expiação limitada estrita, que são o comentário de I Timóteo 2:4-5, o comentário de I João 2:2 e uma breve citação do seu Tratado contra Heshusius. Contra essas três citações existem centenas de outras onde o reformador fala da expiação de Cristo como tendo um caráter universal e ilimitado. Além disso, essas três citações a que me referi estão no meio de várias outras que sustentam uma ideia de uma expiação universal e ilimitada. Veja o que o reformador comenta na sequência sobre I Timóteo 2:4-5 quando chega ao versículo 5 na página 60: 

“E se ficasse impresso nos corações de todos os homens que o Filho de Deus nos estende a mão de irmão, e que está unido a nós por participar de nossa natureza, quem não escolheria andar nessa vereda plana em vez de vaguear por trilhos irregulares e íngremes? 
Por conseguinte, sempre que orarmos a Deus, se porventura a lembrança de sua sublime e inacessível majestade obscurecer de medo nosso espírito, lembremo-nos também de que o homem Cristo gentilmente nos convida e nos toma em sua mão, de modo que o Pai, de quem tínhamos medo e tremíamos, se nos tornou favorável e amigável. Eis a única chave capaz de reabrir-nos a porta do reino do céu, de modo que agora podemos comparecer confiantes na presença de Deus” 

E logo após na página 61:

“O Espírito Santo nos impele a orarmos em favor de todos, porquanto nosso único Mediador concita a todos a virem a Ele, visto que Ele, por intermédio de Sua morte, reconcilia todos com o Pai”


Escrito por Emerson Campos.


Notas:

[1] John Calvin, Sermons on Isaiah’s Prophecy of the Death and Passion of Christ, 52:12, p., 140-1.

[2] John Calvin, Hebrews 9:28.

[3]John Calvin, Sermons on Isaiah’s Prophecy of the Death and Passion of Christ, Sermon 3, 53:4-6, p., 70.

[4]John Calvin, Sermons on 2 Samuel, 38, 12:13-14, p., 575-6.

[5]Calvin, The Eternal Predestination of God (London: James Clark, 1961), 105-106.

Sem comentários:

Enviar um comentário