quarta-feira, 16 de novembro de 2011

João Calvino (1509-1564): A Vontade de Deus Para Salvação de Todos os Homens - Comentário Sobre Salmo 81:13

13. "Oh, se meu povo tivesse me ouvido!" 


Pela honrosa designação que Deus confere ao povo de Israel, ele expõe com mais eficácia sua vergonhosa e destitosa conduta. Sua perversidade foi duplamente agravada, como se verá à luz da consideração que, embora Deus os chamasse para serem seu povo, em nada diferiam daqueles de quem ele era grandemente estranho. E assim ele se queixa por boca do profeta Isaías [1.3]: 



“O boi conhece seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, meu povo não entende.” 

A partícula hebraica, lu, a qual traduzi por Oh, se!, não deve ser entendida como a expressar uma condição, mas um desejo; e portanto Deus, não tenho dúvida, à semelhança de uma pessoa que chora e lamenta, clama: 

"Oh, povo desditoso, que voluntariamente se recusa ter seus interesses mais cuidadosamente satisfeitos!" 

Ele assume o caráter de um pai que, depois de haver tentado todos os meio possíveis para a recuperação de seus filhos, observando que sua condição é totalmente sem esperança, usa a linguagem de alguém aflito que, por assim dizer, suspira e geme; não que ele esteja sujeito a sentimentos humanos, mas porque ele não pode expressar de outra maneira a grandeza do amor que ele nutre por nós. O profeta parece ter tomado por empréstimo esta passagem do canto de Moisés que se acha em Deuteronômio 32.29, onde a obstinação do povo é deplorada com quase as mesmas palavras: 

 “Quem dera eles fossem sábios! Que isso entendessem, e atentassem para seu fim!” 

Ele pretende tacitamente censurar os judeus e imprimir em suas mentes a verdade de que sua própria perversidade era a única causa que os impedia de desfrutar de um estado de grande prosperidade externa.

Se por ventura alguém objetar, dizendo que Deus debalde e sem motivo exprime esta queixa, já que estava em seu poder encurvar os pescoços obstinados do povo, e que, quando não lhe agradasse agir assim, não tinha razão para comparar – se a um homem profundamente ofendido, minha resposta é que ele mui apropriadamente faz uso deste estilo de discurso por nossa causa, a saber: que não devemos buscar a causa de nossa miséria em qualquer outra parte senão em nós mesmos. 

Devemos aqui tomar cuidado de não misturar as coisas que são totalmente diferentes – tão amplamente diferentes umas das outras como o céu está distante da terra. Deus, ao descer a nós através de sua palavra, e dirigir seus apelos a todos os homens, sem exceção, a ninguém desaponta. Todos os que sinceramente vão a ele são recebidos e encontram a real experiência de que não foram chamados em vão. Ao mesmo tempo, devemos seguir o curso da fonte do secreto propósito eletivo de Deus e ver esta diferença: que a palavra entra no coração de alguns, enquanto os demais apenas ouvem o som dela. E todavia não há inconsistência em seu queixume, como se dá com as lágrimas de nossa estupidez quando não o obedecemos. 

 Nos apelos que nos endereça por meio de sua palavra externa, ele se revela no caráter de Pai; e por que não poderia ele também ser entendido enquanto ainda se representa sob a imagem de um pai ao usar esta forma de queixa? Em Ezequiel 18:32, ele declara com a mais estrita consideração à verdade: 

“não tenho prazer na morte de quem morre”, 

contanto que na interpretação da passagem sinceramente e sem diletantismo tenhamos em vista todo o escopo dela. Deus não tem prazer na morte de um pecador. Como assim? Porque quer que todos os homens se volvam para Ele. Mas é sobejamente evidente que os homens, por seu próprio livre arbítrio, não podem ir a Deus, até que primeiro ele mude seus corações empedernidos em corações de carne. Sim, essa renovação, como Agostinho judiciosamente observa, é uma obra que suplanta àquela da própria criação. 

 Ora, o que impede Deus de curvar e modelar os corações de todos os homens igualmente em submissão a ele? Aqui modesta e sobriamente se deve observar que, em vez de forçar entrada em seus decretos incompreensíveis, podemos descansar contentes com a revelação que ele tem feito de sua vontade em sua palavra. Existe a mais justa base para se dizer que ele quer a salvação daqueles a quem se dirige esta linguagem [Is 19.22]:

 “ Vinde a mim, e sereis convertidos.” 

Na segunda parte do versículo que se acha diante de nós definimos o que significa ouvir a Deus. Assentir – se com o que ele fala não basta; porque os hipócritas admitirão sem problema que tudo quanto procede de sua boca é verdadeiro, e se deleitarão em ouvir simplesmente como um asno que inclina suas orelhas. Mas a sentença se propõe a ensinar – nos que só podemos ouvir a Deus quando nos submetemos a sua autoridade.

Fonte:  Calvino, João.  O Livro dos Salmos, volume 3, salmos 69-106.  São Paulo:  Edições Parakletos, 2002. pg 289-291.  Tradução:  Valter Graciano Martins.

Sem comentários:

Enviar um comentário