sábado, 11 de junho de 2011

Leandro Lima: Dois Aspectos da Vontade de Deus¹

O ensino bíblico a respeito da “vontade de Deus” é essencial para entendermos um pouco mais a respeito do relacionamento entre a Soberania de Deus e a Responsabilidade Humana. Podemos definir a Vontade de Deus de duas formas: uma absoluta e outra relativa.


Vontade Absoluta


A vontade absoluta de Deus é conhecida como vontade decretiva. Refere-se a tudo o que Deus determinou que aconteça. Deus tem um plano traçado para todas as coisas e nada neste mundo foge aos seus propósitos. Através de sua intervenção direta ou através de meios naturais, Deus leva a efeito seu plano, e nada pode impedi-lo. Às vezes essa vontade é chamada de secreta por ser desconhecida (Dt 29.29), e também de vontade de propósito, pois se refere ao supremo propósito de Deus. No Livro do Profeta Isaías encontra-se uma excelente descrição da vontade decretiva de Deus: 


“Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade; que chamo a ave de rapina desde o Oriente e de uma terra longínqua, o homem do meu conselho. Eu o disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito, também o executarei” (Is 46.9-11). 

Na descrição do profeta, Deus é aquele que pode anunciar as coisas antes que aconteçam por dois motivos: primeiro porque tem um plano definido, e segundo, porque tem o poder para realizá-lo. Daniel também nos fala sobre a vontade decretiva de Deus: 

“Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: que fazes?” (Dn 4.35). 

Ninguém pode se levantar para impedir que Deus faça algo e nem mesmo questioná-lo. Os moradores da terra nada são perante ele, mas ao mesmo tempo ele opera através deles. Isso se parece muito com a declaração da Confissão de Westminster: 

“Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho de sua própria vontade, Deus ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”[1] . 

A vontade decretiva de Deus é a razão última porque qualquer coisa acontece neste mundo, seja boa ou má. Essa vontade não pode ser contrariada, pois o eterno propósito de Deus não pode ser frustrado. Parece óbvio, que tudo o que acontece nesse mundo, acontece no mínimo, porque Deus permitiu. As vezes esse aspecto permissivo da vontade de Deus é o escape dos teólogos para explicar o inexplicável. Não devemos pensar em Deus como um todo-poderoso passível que simplesmente diz: “pode ser”. Deus é ativo. Ele é o soberano do universo. Num simples ato de permitir, está incluído muito mais do que uma autorização. Mas a Confissão é clara como a própria Bíblia: Isso não faz de Deus o autor do pecado[2] .


Vontade Relativa


Há um outro aspecto da vontade de Deus que se difere do que estudamos acima por não ser absoluto. É a vontade de Deus a qual os homens conseguem contrariar. Um aspecto dessa vontade tem a ver com seus preceitos e está ligado à Lei de Deus. Nesse sentido estamos falando da vontade preceptiva. A vontade preceptiva pode ser também chamada de vontade revelada. Ela refere-se aos mandamentos divinos e ao fato de que ele deseja que sua justiça seja cumprida. Ao contrário da vontade decretiva, a preceptiva pode e freqüentemente é contrariada. Deus deseja que todos os homens cumpram a sua Lei, porém é um fato evidente que a Lei não é respeitada por todos. Neste sentido, sua vontade é contrariada, e isso o desagrada: 

“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7.21). 

Quando Deus ordenou “não matarás”, estava revelando um aspecto de sua vontade, porém, não um aspecto absoluto, no sentido de que não possa ser contrariado, e sim um aspecto relativo, pois o homem consegue cumprir ou descumprir esse mandato de Deus.

Um outro aspecto relativo da vontade de Deus é o que pode ser chamado de vontade de desejo, e nesse caso representa aquilo que Deus gostaria que acontecesse, como Deus bom e justo que é, mas que nem sempre acontece. Isso poder ser visto, por exemplo, em Ezequiel 33.11

“Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de Israel?”. 

Deus não tem prazer na morte do perverso, seu prazer está em vê-lo convertido. É nesse sentido que devemos entender o texto de 1Timóteo 2.3-4 que afirma que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. Deus, em seu ser íntimo, não deseja que alguém seja condenado (2Pe 3.9). Mas nesse ponto é impossível não questionar: Então por que nem todos se convertem? Não há outra resposta senão: Porque não é sua vontade decretiva que todos se convertam, e também porque não é a vontade dos homens de se converter. A certeza que podemos ter é que se converterão todos aqueles que, em seu decreto, foram designados para isso. 

O fato de Deus desejar que certas coisas aconteçam, como por exemplo a conversão dos ímpios, não anula o fato de que ele tem uma vontade decretiva, e que, muitos desses ímpios certamente não se converterão. O simples fato de Deus desejar que todos sejam salvos não faz com que todos sejam salvos. Podemos perguntar em contrapartida: Deus não tem o poder de salvar a todos? Só há uma resposta: claro que ele tem. Então por que não salva? Novamente só há uma resposta: porque embora essa seja sua vontade de desejo não é sua vontade de decreto. A vontade relativa de Deus, portanto, refere-se a algo bom que Deus deseja que aconteça, porque Deus sempre deseja o melhor, mas, ao contrário da vontade decretiva, não precisa necessariamente acontecer. Precisamos pensar na responsabilidade do homem à luz desses dois conceitos da vontade de Deus, que de certo modo, também são conceitos paradoxais.

Se alguém argumentasse, a partir da exposição da vontade absoluta e da vontade relativa de Deus, se é possível que alguém, ao mesmo tempo, cumpra e descumpra a vontade de Deus, teríamos que responder com as palavras de Agostinho: “Este é o significado da afirmação: “as obras do Senhor são grandes, bem consideradas em todos os seus atos de vontade” – que, de uma maneira estranha e inefável, mesmo o que é feito contra a sua vontade [contra eius voluntatem] não se faz sem a sua vontade [praeter eius voluntaten]3 .

Assim, em todos os acontecimentos que envolvem atitudes das pessoas, é preciso sempre lembrar desses dois aspectos da vontade Deus. Certas coisas estão decretadas, outras não. Deus não decretou tudo o que desejou.

Notas do autor:

[1]. Confissão de Fé, III, 1.
[2]. Ver Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predestination, p. 242.
[3]. Citado por: Antony Hoekema. Criados a Imagem de Deus, p. 150.

Nota do blog:

1.  Título adicionado.  Título original:  "Soberania de Deus ou Liberdade Humana"

Fonte:  http://novocalvinismo.blogspot.com/2010/06/soberania-de-deus-ou-liberdade-humana_21.html

Sobre o autor:  Leandro Antônio de Lima é pastor presbiteriano, bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição – SP (1999), mestre em Teologia e História pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper – SP (2003). Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Mackenzie – SP (2009). Doutorando em Letras - Literatura, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. Pastor efetivo da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro – SP. Professor de Teologia no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição – SP. Professor de teologia na FITref. Autor dos livros: Razão da Esperança – Teologia para hoje (2006, Editora Cultura Cristã). As Grandes Doutrinas da Graça (4 volumes pela Editora Odisseu, 2007). Brilhe a sua luz: o cristão e os dilemas da sociedade atual (Editora Cultura Cristã, 2009). 

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