domingo, 29 de agosto de 2010

David Paraeus (1548-1622): Comentário sobre a Questão 40 do Catecismo de Heidelberg

Questão 40: Porque foi necessário para Cristo sofrer a “morte”?

Resposta: Porque a justiça e a verdade de Deus requeria que a satisfação pelos nossos pecados fosse feita de nenhuma outra maneira a não ser pela morte do Filho de Deus.

III. Cristo morreu por todos?

Para responder a esta pergunta devemos fazer uma distinção, de forma a harmonizar aquelas passagens das Escrituras que parecem ensinar doutrinas contraditórias. Em alguns lugares é dito que Cristo morreu por todos, e pelo mundo todo:

"Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo."

“para que [Ele], pela graça de Deus, provasse a morte por todos."

“..julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram.E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou."

" O qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos”, etc.

(João 2:2. Heb. 02:09. 2Cor. 05:15. 1 Tm. 2:06).

As Escrituras, ao contrário, afirmam em muitos lugares, que Cristo morreu, orou e se ofereceu, etc, somente por muitos, para os eleitos, para seu próprio povo, para a Igreja, para as suas ovelhas, etc:

"Eu oro por eles, eu não rogo pelo mundo, mas para os que me tens dado, porque são teus ", isto é, os eleitos somente.

"O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos."

" Eu não sou enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.”

"Ele salvará o seu povo dos seus pecados."

"Este é o meu sangue do Novo Testamento que é derramado por muitos, para remissão dos pecados.”

"Cristo foi oferecido uma vez para tirar os pecados de muitos."

“Pelo seu conhecimento o meu servo justo justificará a muitos, pois ele deve levar sobre si as suas iniqüidades.”

"Cristo amou a Igreja e se entregou por ela."

(João 17:09. Matt. 20:28, 15:24, 01:21. Heb. 09:28, Is. 53:1; Ep. 05:25).

Que diremos, tendo em vista estas passagens aparentemente opostas das Escrituras? A palavra de Deus se contradiz? De maneira nenhuma. Mas seria o caso dessas declarações, abençoadas sejam, que em alguns lugares parecem ensinar que Cristo morreu por todos, e em outros que Ele morreu por uma única parte, podem ser reconciliadas através de uma distinção adequada e satisfatória. Esta distinção, ou reconciliação, é dupla.

Há alguns que interpretam estas declarações gerais como se referindo a todo o número dos fiéis, ou de todos os que crêem, porque as promessas do evangelho pertencem, propriamente, a todos aqueles que crêem, e porque muitas vezes as Escrituras as limita aos crentes: "Todo aquele que Nele crê não pereça" . “A justiça de Deus, que é pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem."

“Para que através do Seu nome os que crêem Nele recebam a remissão dos pecados.” É dessa forma que Ambrósio interpreta as passagens que falam da morte de Cristo como extendendo-se a todos: “O povo de Deus", diz ele, "têm a sua plenitude e, embora uma grande parte dos homens ou negligenciam ou rejeitam a graça do Salvador, ainda existe uma certa ESPECIAL UNIVERSALIDADE dos eleitos, pré-conhecidos, separados e diferenciados da generalidade de todos, para que um mundo todo possa parecer ser salvo de um mundo todo; e todos os homens possam parecer ser redimidos de todos os homens ", etc. Desta forma, não há nenhuma repugnância, ou contradição; porque todos aqueles que creem são os muitos, o povo adquirido, a Igreja, as ovelhas, os eleitos, etc., por quem Cristo morreu, e deu a si mesmo.

Outros reconciliam essas passagens aparentemente contraditórias da Escritura fazendo uma distinção entre a suficiência e a eficácia da morte de Cristo. Porque há certas pessoas contenciosas, que negam que estas declarações que falam de uma maneira geral, devem ser restritas somente aos fiéis, isto é, eles negam que a própria carta, ou a linguagem simples das Escrituras,assim as limita, e para provar o contrário eles apresentam as passagens em que a salvação parece ser atribuída, não só para aqueles que creem, mas também para os hipócritas e apóstatas, como é dito: "Negam o Senhor que os comprou." E, também, quando é dito que eles "se esqueceram da purificação dos seus antigos pecados." (2 Ped. 2:1, 1:9.)

Mas é evidente que as declarações desse tipo devem ser entendidas como ou se referindo à mera aparência externa, vanglória de redenção e de santificação, ou se referindo a suficiência e grandeza do mérito de Cristo. Não deve ser, portanto, necessário que tenhamos que contender com essas pessoas ardilosas e enfadonhas, com relação à limitação das passagens que falam de modo geral (embora sejam mais evidentes por si mesmas) e que aqueles lugares onde se fala da redenção dos hipócritas podem mais facilmente ser reconciliadas, na preferência de alguns (e não sem razão, segundo minha opinião), ao interpretar essas declarações, que na aparência parecem ser contraditórias, em parte pela suficiência, e em parte pela aplicação e eficácia da morte de Cristo.

Eles afirmam, portanto, que Cristo morreu por todos, e que ele não morreu por todos, mas em diferentes aspectos. Ele morreu por todos, no tocante à suficiência do resgate que pagou; e não morreu por todos, mas somente pelos eleitos, ou aqueles que crêem, no tocante à aplicação e eficácia da sua morte. A razão da anterior reside no fato de que a expiação de Cristo é suficiente para expiar os pecados de todos os homens, ou de todo o mundo, mas somente se todos os homens fizerem a aplicação para eles por meio da fé. Por isso não pode ser considerada insuficiente, a menos que queiramos dar apoio àquela blasfêmia horrível (que Deus nos livre!) que alguma culpa da destruição dos ímpios resulta de um defeito no mérito do mediador.

A razão desta última é porque todos os eleitos, ou, aqueles que creêm, e somente eles, aplicam a si mesmos, pela fé, o mérito da morte de Cristo, juntamente com a eficácia da mesma, através da qual obtêm justiça e vida conforme é dito: "Aquele que crê no Filho de Deus, tem a vida eterna." (João 3:36). O resto é excluído desta eficácia da morte de Cristo por sua própria incredulidade, pois mais uma vez é dito: "Aquele que não crê, não verá a vida, mas a ira de Deus permanece nele. "(João 3:36). Esses, portanto, a quem as Escrituras excluem a eficácia da morte de Cristo, não podem ser ditos incluídos no número de pessoas por quem morreu com relação a eficácia de sua morte, mas somente com relação a sua suficiência; porque a morte de Cristo também é suficiente para sua salvação, se apenas vierem a crer, e a única razão da sua exclusão decorre da sua incredulidade.

É o mesmo pode, isto é, fazendo a mesma distinção que nós respondemos àqueles que perguntam sobre o propósito de Cristo, Ele quis morrer por todos? Pois assim como Ele morreu, assim também Ele quis morrer. Portanto, como Ele morreu por todos, com relação à suficiência de seu resgate, e somente para os fiéis no que diz respeito à eficácia do mesmo, assim também Ele quis morrer por todos, em geral, no tocante à suficiência de seu mérito, ou seja, Ele quis merecer pela sua morte, a graça, a justiça e a vida da forma mais abundante para todos; porque não queria que alguma coisa viesse a faltar no que diz respeito a Ele e aos seus méritos, de forma que todos os ímpios que pereçam, possam ficar sem desculpas. Mas Ele quis morrer somente pelos eleitos, no tocante à eficácia da sua morte, ou seja, Ele não só suficientemente mereceu graça e vida para eles, mas também efetivamente confere a eles essas coisas, concede a fé, e o Espírito Santo, e faz isso acontecer para que eles apliquem a si mesmos a eficácia de seus méritos.

Neste sentido, é corretamente dito que Cristo morreu de uma maneira diferente para os crentes e incrédulos. Nem é essa declaração atendida com qualquer dificuldade ou inconveniência, na medida em que ela se harmoniza não só com a Escritura, mas também com experiência; porque ambas testemunham que o remédio do pecado e da morte é mais suficientemente e abundantemente oferecido no evangelho para todos, mas é efetivamente aplicado e benéfico apenas para os que crêem. 

As Escrituras, também, em todos os lugares, restringem a eficácia do resgate somente a determinadas pessoas, como as ovelhas de Cristo, aos eleitos e aos crentes, enquanto por outro lado, excluem claramente da graça de Cristo, o réprobo e o incrédulo pelo tempo que permanecem em sua incredulidade. "Que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel? "(2 Coríntios. 6:15. Ver também, Mat. 20:28, 26:28. Is. 53:11. João 10:15. Mat. 15:24 .)

Além disso, Cristo orou apenas pelos eleitos, inclusive aqueles que já eram seus discípulos, e também àqueles que depois creriam no seu nome. Daí ele diz: "Eu não rogo pelo mundo, mas por aqueles que tu me deste." (João 17:9). Se, portanto, Cristo não quis orar pelo mundo, por que devemos entender que Ele, muito menos, iria querer morrer pelos incrédulos no tocante a eficácia de sua morte, pois menos é orar, do que morrer por qualquer um. Há também duas partes inseparáveis do sacrifício de Cristo: intercessão e morte. E se ele se recusou a estender uma parte ao ímpio, quem é que se atreve a dar a outra para eles.

Por último, os Padres ortodoxos e os doutores também distinguem e restringem as passagens acima da Escritura como temos feito, especialmente Agostinho, Cirilo e Prosper. Lombard escreve o seguinte: "Cristo ofereceu a Si mesmo a Deus, a Santíssima Trindade por todos os homens, com respeito a suficiência do preço, mas somente pelos eleitos no que se refere à eficácia do mesmo, porque Ele efetua, adquire salvação somente para aqueles que foram predestinados."

Thomas escreve: "O mérito de Cristo, quanto à sua suficiência, estende-se igualmente a todos, mas não quanto à sua eficácia, o que acontece em parte por causa do livre arbítrio, e em parte por causa da eleição de Deus, através do que os efeitos dos méritos de Cristo são misericordiosamente concedidos a uns e retidos a outros de acordo com o justo juízo de Deus ". Outros Doutores ainda falam da mesma forma, a partir dos quais é evidente que Cristo morreu por todos de uma tal maneira que os benefícios da sua morte, no entanto, dizem respeito propriamente àqueles que crêeme e apenas para estes são também proveitosos e disponíveis.


Objeção 1. As promessas do evangelho são universais, como resulta das declarações como aquelas que convidam todos os homens a virem a Cristo, para que tenham vida. Por isso não apenas se estende aos crentes. 

Resposta: A promessa é de fato universal no que diz respeito a coisas como se arrepender e crer, mas estendê-la aos réprobos, seria blasfêmia. "Há", diz Ambrósio, como acabamos de citar, "uma certa universalidade especial dos eleitos, e conhecidos de antemão, discernidos e distinguidos 'da generalidade inteira'. " 

Essa restrição das promessas aos fiéis, é comprovada na forma clara e explícita que são expressas. "Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." "A justiça de Deus, que é pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem." Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados”. "Quem quer que invocar o nome do Senhor será salvo." “Tornou-se o autor de eterna salvação para todos os que lhe obedecem. "E a partir das palavras de Cristo: não deis o que é santo aos cães, nem lanceis pérolas aos porcos", etc. (João 3:16. Rom. 03:22. Matt. 11:28. Atos 2:21. Heb. 05:09. Matt. 07:06).

Objeção 2: Cristo morreu por todos. Portanto sua morte não meramente se estende aos crentes.

Resposta: Cristo morreu por todos no que diz respeito ao mérito e suficiência* do resgate que pagou, mas apenas pelos crentes no que diz respeito à aplicação e eficácia da sua morte; tendo em vista que a morte de Cristo é aplicada somente a estes, e é proveitosa a eles, é corretamente dto que pertence propriamente somente a eles, como já foi mostrado. [pp., 221-225] [*a tradução moderna Willard, traz "eficácia", o que parece ser incorreto. Uma tradução para o inglês mais antigo traz "suficiência". Suficiência se encaixa com as declarações anteriores e com o sentimento.]

Obs: Essa é uma contribuição de Paraeus no comentário de Ursino sobre o Catecismo de Heidelberg

Fonte: The Commentary of Dr. Zacharias Ursinus on the Heidelberg Catechism, trans., by G.W.Willard, (Columbus: Scott & Bascom, Printers, 1852).

Tradução: Emerson Campos Pinheiro