sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Norman Douty: A Incapacidade do Pecador

É comumente dito que o pecador de si mesmo não pode se arrepender nem crer. Uma das bases sobre a qual os homens apóiam esta afirmação é Jo 6.44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer.” Escrevendo sobre este assunto, Pink diz:

“Deve ser claramente entendido que, quando falamos da incapacidade do pecador, não queremos dizer que se os homens desejassem vir a Cristo, eles não teriam a força necessária para realizar seu desejo. Não; o fato é que a incapacidade do pecador ou ausência de força é devida à falta de disposição para vir para Cristo, e esta falta de disposição é fruto de um coração depravado. É de primeira importância que distinguimos entre incapacidade natural e incapacidade moral e espiritual.... Por que é que o pecador não pode vir a Cristo a menos que seja trazido? A resposta é, Porque seu perverso coração ama o pecado e odeia Cristo.”[12]

Comentando sobre o mesmo texto, o bispo J. C. Ryle (1816-1900) diz:

“Do que esta incapacidade do homem consiste? Em que parte de nossa natureza interior esta impotência reside? Aqui está um ponto sobre o qual muitos erros surgem. Continuamente deixe-nos lembrar que a vontade do homem é a parte dele que está com defeito. Sua incapacidade não é física, mas moral. Não seria verdadeiro dizer que um homem tem um real desejo e quer vir a Cristo, mas falta-lhe força para isso. Seria muito mais verdadeiro dizer que um homem não tem força para vir porque não tem nenhum desejo ou vontade. Não é verdadeiro que ele viria se pudesse. É verdadeiro que ele poderia vir se quisesse (itálico meu). A vontade corrupta – a indisposição secreta – a falta de inclinação – são as reais causas da incredulidade. É aqui que se encontra o dano. A força que nos falta é uma nova vontade. É precisamente neste ponto que precisamos da atração do Pai.”[13]

Quando o bispo de Liverpool tratou mais extensivamente de Jo 6.44, ele observou similarmente:

“Quando nosso Senhor diz, Ninguém pode vir a mim, devemos cuidadosamente lembrar que é de incapacidade moral, e não física que Ele fala. Não devemos supor que alguém pode ter um desejo sincero e genuíno para vir a Cristo, e todavia seja impedido por alguma impotência misteriosa. A impotência se encontra na vontade do homem. Ele não pode vir porque não quer vir.”[14]

Similarmente sobre Jo 5.40:

“Milhares, em todas as épocas, estão constantemente trabalhando para mudar a culpa de sua condição de si mesmos. Eles falam de sua incapacidade para mudar. Eles dizem a vocês complacentemente que eles não podem deixar de ser o que são! Eles sabem, deveras, que estão errados, mas eles não podem ser diferentes! – Isso não funcionará. Tal conversa não resiste ao teste da Palavra de Cristo diante de nós. Os impenitentes são o que são porque não têm vontade de melhorar... A verdadeira razão por que os homens não querem vir a Cristo, e conseqüentemente morrem em seus pecados, é sua falta de vontade para vir.”[15]

Exemplos deste tipo de perversidade são encontrados em muitas passagens na Escritura. Em Gn 37.4 somos informados de que os irmãos de José “não lhe podiam falar pacificamente,” mas o ódio deles não era uma necessidade inevitável; eles não tinham que odiá-lo. É verdade que eles não podiam fazer outra coisa senão falar agressivamente a ele, visto que eles odiavam-no, mas eles podiam ter evitado odiá-lo. De fato, eles pararam de odiá-lo posteriormente. Em Jo 5.44 Cristo faz aos Seus inimigos uma pergunta pertinente: “Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros e não buscais a glória que vem do único Deus?” Devemos pensar que estes homens não podiam deixar de receber glória uns dos outros e que eles não podiam possivelmente buscar a glória que vem de Deus? Obviamente não. Nem podemos pensar que a incapacidade deles para crer era uma incapacidade absoluta. Era somente relativa; era uma incapacidade tal que eles podiam ter eliminado caso quisessem. Por essa razão era uma incapacidade criminosa, pela qual eles mesmos eram totalmente responsáveis.

É completamente verdadeiro que os pecadores se arrependem e crêem apenas porque foram divinamente induzidos a assim fazer, mas dizer que eles não queriam de si mesmos fazer estas coisas não significa que eles simplesmente não podem. No Julgamento Final, os homens não poderão exonerar-se por sua impenitência e incredulidade alegando falta de força, mas honestamente reconhecerão sua auto-determinação como a causa real. Eles não fazem porque não querem. Como o Dr. Griffith Thomas uma vez disse em meu ouvido: “Não é o poder da vontade dos homens que me preocupa, mas seu poder de não ter vontade.”

De um coisa não pode haver a menor dúvida, e é que na Escritura o pecador é constantemente tratado como se não fosse somente responsável, mas também capaz de fazer alguma coisa. Aqui estão alguns exemplos: “Escolhe a vida, para que vivas” (Dt 30.19); “Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor” (Is 1.18); “Vinde, e convertei-vos de todas as vossas transgressões.... lançai de vós todas as vossas transgressões que cometestes contra mim; e criai em vós um coração novo e um espírito novo.... convertei-vos, pois, e vivei” (Ez 18.30-32); “Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos” (Ez 33.11); “Cuidai de vós mesmos, e não sejais infiéis” (Ml 2.16); “Se não vos arrependerdes, todos.... perecereis” (Lc 13.3, 5).

Além disso, na pregação apostólica do Evangelho, fala-se dos pecadores como se esperassem agir imediatamente – sem qualquer sugestão que, afinal de contas, eles estivessem sob alguma insuperável necessidade de não fazer nada. É simplesmente uma questão de registro que os pregadores primitivos não disseram a seus ouvintes que eles não tinham absolutamente nenhuma capacidade para fazer qualquer coisa em resposta ao chamado, convite, comando e ameaça de Deus. Mas não precisamos, por isso, dizer que estes homens inspirados eram pelagianos ou arminianos ou ambos. Todos precisamos tomar cuidado a fim de que não, como o “pensador brilhante e sagaz,”[16] William Archer Butler (1814-1848), disse, “Mantemos poucos textos tão próximos dos olhos que eles escondem o restante da Bíblia.”[17]

Acredita-se que a incapacidade total seja o resultado necessário da depravação total, mas não é. A depravação total somente significa que a totalidade das faculdades do homem foi afetada pelo pecado – não que suas faculdades foram totalmente arruinadas por ele. Se elas foram, então obviamente ele é incapaz de qualquer ação correta. Mas a Bíblia toda, como acabamos de observar, contradiz isto.

Mas vamos, por ora, supor que o pecador jaz sob uma impossibilidade absoluta de se arrepender e crer. Vamos imaginar que ele simplesmente não pode se dedicar a estes atos que são necessários à sua salvação. Essa incapacidade o prende em desespero? De maneira alguma, visto que Deus não é somente capaz de lhe conferir o poder necessário, mas também está disposto a agir assim. Tudo que o pecador incapaz tem que fazer é clamar a Ele pela capacidade necessária.

Não pode justificavelmente ser dito que o pecador é tão impotente que não pode nem mesmo clamar a Deus. Todos os dias pessoas ímpias Lhe imploram por livramentos temporais de vários tipos, e embora eles não tenham nenhuma promessa de resposta, todavia muitos obtêm o que pedem. Eu conheci casos como esses, e o leitor pode ter conhecido alguns também. Veja, por exemplo, Sl 107.23-30.

Agora, se os pecadores podem recorrer a Deus para suas necessidades físicas, eles podem – se somente desejarem – recorrer a Ele para concedê-los a capacidade para se arrepender e crer. E assim, até mesmo na hipótese de que lhes faltam qualquer poder para desempenhar estes atos essenciais, eles não estão sem meios de adquirir esse poder. Então, eles são tão responsáveis quanto se eles mesmos tivessem o poder.

Notas:

[1] Murray, Redemption, Accomplished and Applied (Grand Rapids, 1955), pp. 62-75.

[2] Hodge, Systematic Theology (Grand Rapids, 1946), Vol. II, pp. 545f.

[3] ibid., p. 558.

[4] Murray, op. cit., pp. 61f.

[5] Hodge, op. cit., pp. 544-546.

[6] Morris, “The Themes of Romans,” em Apostolic History and the Gospel (Exeter e Grand Rapids, 1970), p. 262.

[7] Owen, The Death of Death (1959), p. 62.

[8] Owen, Works (ed. Goold, 1850), Vol. III, Cap. IV, p. 168.

[9] Hodge, op. cit., Vol. II, p. 544.

[10] ibid., p. 546.

[11] ibid., pp. 556f.

[12] Pink, The Sovereignty of God (Grand Rapids, 1959), pp. 187f.

[13] Ryle, Expository Thoughts on the Gospels (1856-73; reimpresso Grand Rapids, 1900), Vol. III, pp. 383f. Thomas Scott diz que a deficiência do pecador para vir a Cristo “não é [por causa de] falta de capacidade natural.”

[14] Ryle, op. cit., p. 389.

[15] ibid., pp. 317, 320.

[16] The New Schaff-Herzog Religious Encyclopedia, artigo sobre William Archer Butler, Vol. II, p. 321.

[17] Citado em D. M. McIntyre, Spirit and Power (Londres, 1913), p. 10.

Sem comentários:

Enviar um comentário